quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Calais - People to People



Refugiados. Muito tenho pensado nos últimos dias sobre eles. Muitas coisas têm acontecido que mexem com a minha cabeça e me deixam com um misto de emoções, sem saber bem o que fazer ou em que acreditar. Esta publicação, porém, não serve para falar sobre nada disso. Não vou expor aqui a minha opinião sobre a entrada dos refugiados na Europa - isso fica para outro dia. Com esta publicação pretendo apenas expressar por palavras aquilo que vi em Calais sem qualquer tipo de propaganda.
Fui para Calais com cinco amigo numa carrinha cheia de alimentos e bens essenciais que conseguimos angariar. Comida, roupa, material de campismo, produtos de higiene e até produtos de lazer tais como livros, rádios e baralhos de cartas... Tudo o que nos foi permitido levar. À nossa espera tínhamos um colega que se prontificou a receber-nos assim que soube da nossa intenção. Já estava em Calais há três meses, na data da nossa chegada, e ainda hoje lá está, sem qualquer intenção de regressar tão cedo. Devido ao facto de ele trabalhar como voluntário para uma das muitas associações que lá existem, tivemos maior facilidade em percebem como é que as coisas estão a funcionar em Calais com os refugiados e o nosso objectivo foi alcançado de forma simples, rápida e eficaz.
Logo no primeiro dia fomos para a  selva - jungle, em inglês, o termo que toda a gente que lá está usa para designar o local onde os refugiados estão agrupados. Não levar bolsas cheias e/ou muito grandes, andar sempre em grupo e sair de lá antes de escurecer. Foram estas três indicações que nos foram dadas à chegada por um refugiado que dava a entender ser um representante do seu grupo. Enquanto nos levava a conhecer a sua família e o resto do acampamento contou-nos que, até então, nunca tinham havido incidentes entre refugiados e voluntários mas o mais seguro era seguir essas três regras de forma a evitar que essa situação fosse alterada. Todas as pessoas foram atenciosas connosco. Alguns falavam um pouco de inglês, outros não falavam mais nenhuma língua sem ser árabe mas, ainda assim, estavam sempre a agradecer-nos e a oferecer-nos de tudo um pouco. Faziam um esforço enorme para comunicar connosco e a hospitalidade não diminuiu quando deixamos de ter coisas connosco para oferecer.
O que mais me chocou foi a miséria em que eles vivem. Estava preparada para o pior mas o que vi foi ainda mais ruim do que aquilo que esperava. Condições sanitárias? Inexistentes. Não havia condições de saúde nem de higiene. As pessoas em Calais vivem como animais e não é por acaso que lhe chamam selva. Os refugiados vivem em tendas, alguns em cabanas improvisadas, mas muitos são os que dormem ao relento. Uns ainda têm sacos cama, outros não. No entanto, quem lá está prefere vivem assim e em paz do que viver nos seus países. Isso foi uma das coisas que mais me tocou.
De tudo o que levamos, pouco foi o que distribuímos diretamente aos refugiados. Alguma comida, doces pelas crianças e sacos-cama por quem sabíamos que estava a dormir ao relento, o  restante foi entregue à associação que nos recebeu, não por ser a opção mais fácil mas sim por ser mais justo. As associações ainda funcionam de forma um pouco desorganizada, tal é a quantidade de donativos que recebem diariamente, mas distribuem as coisas de forma justa e de maneira a chegar a toda a gente. Os processos de distribuição de bens pelos refugiados funcionam por tickets que são distribuídos mensalmente ou semanalmente - dependendo dos tipos de bens a ser distribuídos. No entanto, como não há bens que cheguem para todos, as associações fazem um esforço para ir alterando e não estar sempre a dar tickets às mesmas pessoas - numa semana recebem uns, noutras recebem outros. Porém, quando as pessoas decidem entregar diretamente os bens aos refugiados, sem passar pelas associações, o processo de destruição pode ficar desequilibrado. Algumas pessoas podem receber determinado bem duas ou mais vezes enquanto que outras não recebem nada. Quando nos explicaram esta situação, a nossa decisão de dar quase tudo para a instituição foi imediata. Não nos arrependemos, principalmente pelo facto de eles nos deixarem fazer parte de todo o processo de distribuição. 
Depois de algumas conversas com refugiados, percebi aquilo que todos eles têm em comum: o desejo de ter uma vida normal. Nada mais. Um lar, um trabalho e paz. A felicidade está-lhes estampada no rosto quando recebem um par de sapatos ou um saco de cama para dormirem quentes durante a noite e, apesar de viverem de forma miserável e em condições desumanas, estão melhores aqui do que estavam no país deles. Enquanto esperam que a União Europeia decida o que fazer com eles, vão vivendo o dia a dia da forma mais normal que lhes é possível. Improvisam e constroem casa, igrejas e mesquitas. Alguns vão mais além e criam os seus próprios negócios - há restaurantes, cabeleireiros, e stands de doces para as crianças. Até instituições comunitárias eles construíram! Têm escolas e representantes. É de ressaltar o facto de tudo ter sido construído com o pouco que lhes deram - bocados de madeira e plástico. Vivem em comunidade, não estão separados por religião, e organizaram-se a eles próprios. Com nada, construíram tudo. É este o tipo de pessoas que tanta gente diz não ter nada a oferecer à nossa sociedade?

12 comentários:

  1. Impressionante o teu texto, gostei muito :)

    ResponderEliminar
  2. Gostava de ter um comentário brilhante para fazer mas não tenho. Obrigada por teres escrito este texto e por teres partilhado uma realidade que não conhecemos para além daquilo que os meios de comunicação vão transmitindo.

    ResponderEliminar
  3. r: Dão mesmo vontade de comprar. Mas pelo que me parece é que não enviam para Portugal.

    ResponderEliminar
  4. É este o tipo de pessoas que tanta gente diz não ter nada a oferecer à nossa sociedade? O problema da maioria das pessoas é que se "contentam" com as informações que chegam dos medias e não pensam por elas. Gostei muito da tua reflexão e concordo com ela.

    ResponderEliminar
  5. Pergunto-me porque é que este tipo de informação não é partilhada no horário nobre!! Se calhar não interessa passar e é tão triste que assim seja!

    ResponderEliminar
  6. Adorei este texto! É sempre bom conhecer a opinião de quem viu a realidade dos refugiados de perto. Incrível, Margarida, especialmente o final...
    Beijinho*

    ResponderEliminar
  7. Confesso que estava ansiosa por ler este teu texto. Um relato real de alguém que contactou com a situação. Porque nós cá só sabemos o que nos deixam saber.
    R: Fiquei mais descansada por não ser a única ahah

    ResponderEliminar
  8. Nem sei o que dizer para além do agradecimento por teres partilhado connosco uma experiência que tem tanto de triste como de enriquecedora.

    ResponderEliminar
  9. É um daqueles textos que deixa qualquer um sem palavras/comentários.
    Mas algo que tenho reparado em relatos deste género (não só deste ano, porque infelizmente o que não faltam são casos destes há décadas), é que quem se voluntaria para ajudar acaba sempre por, no local, infezlimente deparar-se com uma realidade pior do que aquela que é transmitida pelos media. Se se costuma dizer que uma imagem vale mais do que mil palavras, aqui a experiência em primeira mão vale mais do que qualquer imagem.

    ResponderEliminar
  10. O teu texto tocou-me! faço voluntariado na minha cidade mas um sonho meu passar fronteiras! O teu gesto foi muito bonito e nota-se que ganhas-te outra maneira de ver as coisas... Não é para todos!
    Obrigada por partilhares a tua experiência conosco!

    ResponderEliminar